segunda-feira, 7 de junho de 2010

O Imaginário Europeu e a América

Prof. Paulo Ricardo Muniz

Os Portugueses que tinham achado o Brasil e os outros europeus que voltavam das Américas, regressavam com toda a espécie de narrativas exóticas, novidades científicas, plantas, animais e até seres humanos, para serem expostos à curiosidade daquele Velho Mundo.
A América descoberta, encontrada por Colombo, em meio a “mares nunca dantes navegados”, incorporou-se ao imaginário europeu com um leque de atributos que já havia sido destinado a ela numa época em que nem descoberta tinha sido.
Os incontáveis círculos eruditos dos geógrafos e dos cartógrafos, respondendo às várias ideologias religiosas e científicas, vinham ao longo dos últimos séculos se questionando e se informando sobre o que existiria “além mar”: riqueza ou devastidão, fortuna ou desespero, humanos ou demônios. Seria o fim do mundo ou um outro mundo ?
Através de variadas narrativas de viajantes como o italiano Marco Pólo e o português Fernão Mendes Pinto, o Oriente havia seduzido a imaginação daquelas sociedades em rápida transformação porém, para a quase totalidade das pessoas, os mares eram vistos como lugares de acesso temerário, habitados por monstros e fustigados pelas tormentas.
A primeira imagem concreta da América que surgiu aos olhos do europeu foi revelada por Colombo e ele a chamou de “Índias”. De fato, Colombo pensou ter chegado às Índias. Em conseqüência, tudo o que seria descoberto e encontrado nestas terras seria nomeado e carimbado como “indiano”.
A Igreja e a aristocracia enxergavam na idéia de América uma fonte nova de poder e riqueza. Por razões estratégicas - que envolviam até técnicas de contra-informação, como a divulgação de mapas geográficos propositalmente falseados - as Coroas só permitiam a uns poucos e leais servidores o acesso aos bem guardados segredos da nova geografia.
Com o regresso das caravelas e as tripulações recheadas de novidades, as Américas passaram a serem descritas ora como longínquos infernos hostis, de climas insalubres, habitados por criaturas inumanas, canibais e bestas demoníacas, gente que parecia ter sido esquecida por Deus; ora como paraísos férteis, povoados de selvagens nus e gentis, pacíficos e felizes, que pelo contrário teriam sido protegidos em seu estado divinamente “puro”.
Se a fé de Colombo alimenta sua imaginação e o conduz a leituras de absoluta conformidade e harmoniosa sintonia com a espiritualidade cristã, seus entendimentos com os membros da Igreja obrigam-no também a conduzir suas narrativas nesta mesma direção. Assim sendo, Colombo vê mais com a fé do que com os olhos e reafirma a perigosa - já que deturpada e corrompida - prática de sobrepor o sonho à realidade e a crença à ciência. E, quando se vê confrontado a expressões da natureza que escapam aos modelos já conhecidos, fica desarmado e, segundo suas próprias palavras, obrigado a admitir sua incapacidade de explicar.
Logo nos primeiros relatos dos viajantes, o Novo Mundo despertou paixões inflamadas. A partir do início do século XVI os testemunhos passaram a separar verdades de fantasias, inspirando numerosas publicações repletas de relatos e imagens, o que contribuiu para uma visão mais apurada das, assim denominadas, Américas.
O Brasil, a Terra Brasilis, é representado com florestas frondosas, frutos e águas abundantes, indígenas de pele escura, pássaros multicoloridos, estranhos e bizarros animais.
Fabrica-se então uma América farta, opulenta e colorida, moldada na riqueza e na exuberância do já conhecido Oriente, mas também uma América imaginária, despudorada e sedutora. Os europeus se encantam, cedem aos charmes exóticos, deliciam-se com especiarias e sonhos, luxos e fortunas.
Foi então, no século XVI, que começaram a surgir na literatura e nas artes as primeiras figuras de ameríndios. Do ponto de vista dos conquistadores e seus aliados religiosos, tratava-se de povos que precisavam ser catequizados, integrados aos valores do Cristianismo universal, único caminho para poderem salvar suas almas e viver como crentes, uma tarefa gigantesca que agora se impunha aos evangelizadores.
Pinturas e gravuras da época, agora documentadas pelos relatos, revelam paraísos, uma natureza farta de frutas e animais e um esplendor de cores e sentidos colocados à disposição dos homens pelo Criador. Já na construção imaginativa oposta descrevia-se o índio selvagem, primitivo, bárbaro, nu, canibal, pagão, ignorante, inserido num ambiente inumano, atormentado por um “calor infernal”, às voltas com as suas florestas intransitáveis, seus animais ferozes, suas doenças letais. Enfim, uma visão terrena antecipada do que seria o inferno, tudo isso criado por Deus para “castigar” os selvagens pagãos.

A Ciência e o Imaginário
O imaginário europeu, nutrido agora com dados científicos, relatados em cartas náuticas e experiências descritas em relatos de viagens, abre-se para as Américas, enriquecido pelas idéias do Renascimento. Imensa quantidade de gravuras e desenhos revela um outro ser humano, bem diferente do europeu: índios em contato direto com a natureza pródiga, de corpos saudáveis e bem torneados, bem alimentados de carnes e frutas, adornados com jóias e plumas. Uma concepção distante do imaginário anterior dos homens primitivos, deslocando-se em bandos miseráveis, vestidos com peles de animais, acocorados em volta do fogo, em paisagens áridas, sofrendo uma vida de pobreza e perigos, apenas sobrevivendo tristemente. Era a visão de um mundo onde não existia prazer, nem alegria, nem conforto.
Quanta diferença da indolência sensual e contagiante dos índios, com sua fartura e diversidade de alimentos, a beleza dos corpos, os risos e as brincadeiras de seus passatempos! Espantaram-se os descobridores com a variedade e diversidade dos povos na América, ricos e particulares, suas línguas, culturas e costumes.
Muitos povos eram pobres, mas alguns possuíam riquezas fartas, ostentavam artefatos luxuosos e acumulavam tesouros de ouro e pedras preciosas. A mais completa ausência de tecnologias “modernas”, tais como ferro, arado ou pólvora não impedia um estilo de vida gerador de riquezas capazes de despertar sanguinárias ganâncias nos sonhos dos conquistadores que varreram as Américas do México ao Peru.
Nas mentes européias, a descoberta de sociedades humanas pagãs e primitivas, vivendo em aparentes paraísos, teve um impacto surpreendente. Na Europa cristã, a esperança de uma pessoa ser aceita no paraíso, anteriormente estava indissoluvelmente associada aos cristãos tementes a Deus e merecedores da escolha divina. Não podemos esquecer que se vivia na Europa Ocidental da Inquisição. O conceito de ser primitivo implicaria obrigatoriamente uma vida miserável. As revelações do Novo Mundo chocavam-se e desmentiam as concepções religiosas e as tradições filosóficas medievais.
Do século XVI ao XVIII se consolidará esse imaginário do poder, junto às descrições apelativas de Eldorados e de terras paradisíacas, ficções, ensaios, teatro, poesia, polêmicas, debates em torno da monarquia e liberdade, da cidadania, ou seja, da subjetividade moderna nascente. Shakespeare, Montaigne, Ronsard, Rabelais, Rousseau, Diderot, Voltaire, La Fayette alimentaram, cada um à sua maneira, o imaginário europeu sobre a América.
Surgiram mais tarde também teses de tipo romântico, que defendiam o contrário da visão tradicional: todo o homem primitivo seria bom, apenas se tornando mau quando corrompido pela sociedade. Era a “teoria do bom selvagem” imortalizada por um filósofo, nascido em Genebra, Jean Jacques Rousseau (1712-1778).
Porém, não era possível dissociar a idéia do índio primitivo das suas práticas de canibalismo, o que estava presente em muitos relatos de viajantes. As opiniões sobre o tema divergiam: tratava-se de canibalismo ritual ou de antropofagismo alimentar?
Na prática, o canibalismo representou uma ruptura radical entre os indígenas e os conquistadores. A ingestão de pedaços de carne humana aparecia no imaginário europeu ora como forma de vingança dos inimigos vencidos, ora como prática ritual para adquirir as características das pessoas sacrificadas, mas sempre como um traço cultural abominável.

Fonte: http://www.raulmendesilva.pro.br/pintura/pag002.shtml

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